sábado, 14 de janeiro de 2012

Lenda do bicho homem

No fundo das matas virgens e encostas das escarpadas serras de São João das Missões de Januária, segundo lendas antigas, morava o bicho-homem. Rezavam elas que em tempos primitivos, dezenas de índios caçadores e meladores daquela aldeia foram por ele devoradas.
Diziam-no um gigante tão alto, que sua cabeça tocava as frondes das mais altas arvores, tendo um olho só, um pé só, pé enorme, redondo, denominado por isto de pé de garrafa.
Afirmavam que em eras não mui remotas, um dia pela estrada real apareceram as pegadas extraordinárias jamais vistas, de uma criatura humana.
Mais de vinte cavaleiros infrutiferamente seguiram-nas por muitos dias.
A idéia e o perigo de encontrar-se o bicho-homem os dissuadiram da empresa. Não poucos atestavam tê-lo visto, pintando-o com cores vivas e tão vivas, que nunca mais na aldeia essas se apagaram da imaginação aborígene.
De tempos a tempos sucedia que lenhadores, caçadores e meladores, amedrontados e escarreirados das brenhas e carrascais aos gritos do bicho-homem, alarmavam a aldeia.
Esses gritos eram horrorosos; e se um dia por desgraça, saísse o bicho dos seus esconderijos das montanhas, bastaria um só para arrasar o mundo.
Sua existência estava povoada por sinais de seus dedos monstruosos e aguçadas unhas, lanhando as terras vermelhas e pedras das paredes dos altos montes, os escalavrados cor de sangue das ladeiras íngremes e mais que tudo os pedaços de sua longa cabeleira que de passagem deixava-os pendurados nas ramagens. E aos bocados apanhando-os juravam e juravam tanto por essa existência, tais a certeza e a convicção dessa verdade, que as gerações modernas nunca mais a esqueceram.
Um dia, em 1893, em demanda do arraial do Jacaré, ribeirinho povoado do São Francisco, fronteiro ao grande morro do Itacarambi, chegara de carreira um tapuia das cercanias, conduzindo três filhinhos.
Ali entrara desvairada, gritando, pedindo socorro, bradando misericórdia. Cercaram-na, indagando a causa.
Era o bicho-homem que gritava na floresta, tendo descido as montanhas; que lá vinha errando e o mundo estava pr’acabar.
Que bem diziam os seus antepassados!
Ela e muita gente sua tinha ouvido os seus horrores.
Por essas catingas, apontava ela, estirando a dextra, em busca da beira do rio, muito povo, muito povo correndo!
Causava lástima ver-se o estado triste, desesperador, dessa pobre criatura em desalinho, roupas em tiras, olhos esbugalhados, apontando sempre quase louca em rumo as montanhas interiores.
— Ah! o bicho-homem! Ouvi gritar! É horroroso! É horroroso, Virgem Mãe do Céu!
O povo olhava atônito para o fundo escuro das selvas, onde, a um canto ao norte, se alteiava o dorso gigante do Itacarambi.
Estaria, porventura, o monstro ao detrás do fabuloso e vizinho monte?
Existia a lenda.
De fato, seria verdadeira a historia do bicho-homem? Seria mentira dessa cabocla e deveras andariam outros correndo, amedrontados como ela?
— Uai! uai! uai! uai! ai! ai!... ô! ô! ô! ô!... ai! ai! ai! ai! ai! ai! uai... ai ai ai ai! ô! ô! ô! ô!... bradara desse instante forte por mais de três léguas em torno um grito formidável, de ferro, realmente pavoroso de lástima, alto, profundo, imenso, aterrador e pungente, vale em fora — o apito de vaia, descomunal, vagabundo, peralta, desmantelado, gracista, metido a sebo e pedante, do vapor Rodrigo Silva de passagem por aquele porto.

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